Nasci numa cidade que era servida pelo trem de ferro, mas só quando mudei para o Ceará, aos dez anos, fiz realmente uso do transporte ferroviário. Fomos morar em Senador Pompeu, no Sertão Central, cuja única ligação com Fortaleza e o Cariri era o trem. Além disso, sempre passamos as férias escolares na fazenda São Joaquim, em Cariré, a segunda estação depois de Sobral.
Então, em janeiro e julho, juntava-se as tralhas e lá ia a família de Senador a Fortaleza, pela linha sul da estrada de ferro e de lá se pegava o trem para Cariré, na linha norte. Nem de longe era aquela viagem glamorosa dos trens europeus, nem a confortável viagem dos mineiros de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro pelo Vera Cruz. Antes, pelo contrário.
A composição tinha carros de primeira e de segunda classe, um vagão de carga e do correio e um vagão restaurante que atendia precariamente a demanda. Os carros de segunda tinham bancos de madeira, os de primeira eram estofados e viravam de lado, permitindo que a família ficasse assim numa sala de estar. Como não havia lugar marcado, vendia-se tantas passagens quantos passageiros querendo viajar e o trem que passava em Senador já vinha do Crato, sempre sobrava pra gente o corredor.
Saindo de Senador a viagem não tinha hora para começar nem acabar, já que dependia dos eventos acontecidos antes ou depois daquela estação. Que incluíam a espera por composições de carga ou passageiro que viessem em sentido contrário, eventuais problemas mecânicos no trem que você estava e até, em casos mais raros, descarrilamentos, que exigiam tempo para o conserto da linha. Estando no horário normal, dava pra dormir um pouco na casa de amigos e pegar o trem para o Cariré, de madrugada, numa correria para pegar um lugar sentado.
A viagem era assaz desconfortável e estressante e a única coisa que nos fazia ansiar por ela era a perspectiva de um mês ou dois na fazenda São Joaquim, com banhos de açude ou de rio, leite mugido, passeios a cavalo, farinhadas e muita magia e amor. Na volta, o gostinho cruel de fazer inveja aos amigos que não tinham este privilégio.
Numa dessas viagens, depois de dois dias num percurso que devia ser de horas, meu pai se aborreceu, foi até à cidade, comprou um jipe e um motorista e nele prosseguimos a viagem. A partir de então, escassearam as viagens de trem. E fico me perguntando porque diabos quando voltei a visitar estas cidades, algumas dezenas de anos depois, fui logo visitar as estações de trem e fotografá-las.
Talvez porque a estação era o sopro de vida destas cidades, onde chegavam as pessoas, as notícias, o jornal, as cartas, toda a ligação com o mundo. E isso tenha ficado na cabeça de todos, mesmo dos que não fazem a menor ideia do papel que o trem de ferro exerceu nestas cidades nos primórdios do século XX.

Mano, você é um gênio. Deus sabe o quanto eu lhe admiro. Sua capacidade de abraçar as diversidades da vida me dá inveja. Agora, como escritor, me faz sentir a saudade e ao mesmo tempo a felicidade de voltar ao nosso tempo de infância, que aliás foi muito feliz.
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