Chuteiras e mortais

Em 1958, o futebol brasileiro encantou o mundo com uma seleção que unia o talento inquestionável de seus craques a um sistema de jogo que lhes permitia exercê-lo. Um time compacto que fechava os espaços na defesa, dificultando o adversário e saia ordenado para o ataque causando estrago. Já no primeiro jogo, o lateral esquerdo Nilton Santos avança com consciência e deixa lá o seu. As qualidades do jogador brasileiro já eram reconhecidas há tempo (o Brasil jogara todas as Copas do Mundo), mas o esquema tático da seleção despertou a admiração de analistas e estudiosos que se dedicaram a estudá-lo e imitá-lo. Também chamou a atenção o trabalho dos cartolas, focados na conquista da copa. Que aconteceu com goleadas na semifinal e na final e a consagração do futebol brasileiro. De quebra, a revelação de Pelé aos 17 anos.

A Europa tratou de estudar e aprender com o que viu. Por aqui, cada dirigente tratou de capitalizar o feito pra sua promoção pessoal. Ainda fomos campeões 4 anos depois com a mesma base, mas chegamos em 1966 na mais completa desorganização, dentro e fora do campo, sendo eliminados na primeira fase. O susto fez os dirigentes contratar como treinador um comentarista lúcido e desassombrado, João Saldanha, que classificou o time pra Copa de 70 e recuperou o espírito do futebol brasileiro. Ato contínuo, João Sem Medo foi demitido ainda antes da copa. A equipe, entretanto, foi campeã, conquistando de forma definitiva a Taça Jules Rimet, roubada depois da sede da CBF, como sabemos. De lá pra cá, a cartolagem tem feito de tudo para destruir a reputação que o futebol brasileiro conquistou em campo. A torcida só fica conhecendo alguns jogadores quando convocados pra seleção.

Quando o Barcelona aplicou 4×0 no Santos na final do Mundial de Clubes de 2011, Guardiola declarou na entrevista – ‘jogo como aprendi que jogava o futebol brasileiro’. Antes, a seleção alemã de 2010 copiou, nos mínimos detalhes, todo o esquema de preparação do Brasil na Copa de 58, inclusive a sonora goleada nos anfitriões. Natural, pois, que a grande sacudida na mediocridade reinante no esporte tenha vindo de um técnico europeu. Embora, apenas dentro de campo. Fora dele, o descalabro persiste. O próprio time campeão, com todos os méritos, mostra seu descaso, com o incêndio em seu alojamento dos jogadores da base. Com trágicas consequências.

Acaba o campeonato brasileiro e os times alegam estar falidos. Como é que pode? Os cartolas sempre geraram muito dinheiro com o futebol. No princípio, eram as cotas de clubes convidados a disputar torneios em outros países, a exemplo do Santos dos anos 1960. Depois, a venda de craques para times europeus. Por último, a venda das revelações das categorias de base, para um mercado bem mais diversificado. Além dos patrocinadores, que poluíram os tradicionais uniformes, as cotas de transmissão dos jogos, as premiações de campeonatos, programas de sócio-torcedor, as rendas das bilheterias dos estádios (altíssimas, desque inventaram que futebol não é pra pobre). Tudo na casa de milhões e quase sempre em EURO ou dólar. Nunca se sabe o que é feito com esta grana. Vivaldinos aprovam a toque de caixa na Câmara Federal um projeto de lei de clube-empresa. Como se o problema fosse a falta delas e não a observância das que já existem.

Acompanho futebol, com paixão, desde criança. E não vejo nenhuma iniciativa para a mudança deste quadro. Talqualmente empresários de outros setores, vamos nos contentar em ser fornecedores de commodities, pleiteando sempre um novo programa de refinanciamento de dívidas, recuperação judicial ou desoneração fiscal. O futebol profissional do exterior já começa a dispensar a intermediação dos times brasileiros, negociando diretamente com os procuradores de jovens promessas. Daqui a pouco estaremos contratando jogadores em fim de carreira no exterior. Basta ver o entusiasmo que hoje desperta a seleção brasileira, palco privilegiado de políticos oportunistas. Geraldinos e arquibaldos estarão vendo campeonatos estrangeiros pela TV. E vivendo a emoção do futebol, jogando e curtindo peladas em campos de barro.

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