Cariocas de bens têm desagradável surpresa no alvorecer de 1808. Para abrigar fidalgos e quetais, acompanhantes da Corte Portuguesa em sua fuga para o Brasil, são intimados a desocupar suas casas, as melhores na vizinhança do palácio, deixando nelas porém mobiliário e criadagem para servir os novos donos. Sem aluguel e indenização, que as burras do Reino tão vazias. Uma versão radical do Auxílio-Moradia.
Talqualmente os remediados de hoje em dia, que sacrificam qualquer resquício de dignidade para puxar saco dos poderosos de plantão, engoliram em seco e acataram a real determinação, expressa nas letras PR, pintadas nas casas escolhidas. Alguns vivaldinos viram mesmo até uma chance de faturar algum e doaram casas e terrenos ao rei, sendo recompensados fartamente no momento certo.
Mas a arraia miúda não perdeu a chance de gozar com a cara dos ricaços. Logo traduziu a inscrição PR (de Príncipe Real) para o seu real significado: Ponha-se na Rua. Aliás, o deboche e a gozação têm sido uma arma muito usada pelos oprimidos para lidar com a situação em que vivem. Como o mostram os versejos da época “Nosso preto quando furta/ Vai parar na Correção/ Sinhô branco quando furta/ Sai logo sinhô barão” e ainda “Quem furta pouco é ladrão/ Quem furta muito é barão/ Quem mais furta e esconde/ Passa de barão a visconde”, reproduzidos no livro BRASIL: UMA BIOGRAFIA, de Lília Schwarcz e Heloísa Starling (Companhia das Letras, 2015). Poderoso detesta humor não é à-toa.

O episódio também joga por terra o conceito de direito absoluto à propriedade privada, apregoado pela mídia e aceito pelos leitores como dogma inquestionável. Os donos do poder têm visão diametralmente oposta. Seu único parâmetro é o interesse imediato, abduzindo a noção de Direito e de Justiça. Seus áulicos reproduzem o mantra como mostra a ‘jornalista’ (ex-Estadão, hoje Globo) chamar Boulos de bandido, apenas por ele defender o direito de cada família ter a propriedade privada de um teto. E juízes de todas as instâncias dão roupagem legal para despejos criminosos em todo o País.
“O Brasil tem um passado enorme pela frente”, nota Millôr Fernandes. Que começa com a invasão portuguesa, em 1500, e segue intocado pelos governantes atuais. Povos indígenas, agricultores sem terra, nativos do litoral, moradores de comunidade estão sob a ameaça constante de expropriação arbitrária a depender da cobiça de grupos econômicos, disfarçada como ações de desenvolvimento. Remover este entulho é condição básica para pensar num futuro. Consciência e resistência, as ferramentas. E não há tempo a perder.